Em 2013, visitei a exposição que o irmão de Amy Winehouse organizou no Museu Judaico de Londres. Ele queria revelar quem era Amy antes de estourar como uma das vozes mais prestigiadas da soul music e de virar figurinha fácil dos tabloides por sua performance nada sublime com álcool e drogas. Lembro de ter saído de lá comovida com a normalidade daquela menina britânica que escutava Carole King e Dinah Washington, que curtia Snoopy, que tirava fotos com as amigas, que tinha uma caligrafia infantil. Era este o acervo da mostra: seus livros, discos, fotos, bilhetes, vídeos do colégio. Uma exposição para homenagear a primeira parte de uma vida muito parecida com a minha e a sua, mas que, apesar de ter durado tão pouco (27 anos), foi subitamente repartida em duas.
O mundo só conhece a segunda parte, a recheada de prêmios e vexames. O documentário Amy, que ganhou o Oscar no último domingo, interliga ambas as fases e deixa claro que o turning point se deu com a entrada em cena de um sujeito chamado Blake.
Dizer que a paixão pode destruir uma pessoa é um clichê, mas parece que foi mesmo o caso de Amy. Ela não apenas amava o namorado: queria fundir sua vida na dele, desejava que fossem um só – e levou esse romantismo ao extremo. Repetia tudo o que ele fazia, consumia tudo o que ele consumia, chegando ao absurdo de se machucar de propósito quando ele se machucava. Ela queria sentir a dor dele na carne dela, uma imolação que foi um filé mignon para a imprensa. Até que ele foi preso e ela se tornou uma compositora e intérprete ainda mais fenomenal, cantando com o nervo exposto. Porém, ao ser libertado, Blake a esnobou, ela entrou em parafuso, e dali por diante não surtiram efeito suas várias tentativas de rehab.
É a história de uma mocinha e de um vilão? Não é tão simples. É a história de uma mocinha, do divórcio de seus pais, de uma bulimia, de um talento sem medida, de um sucesso para o qual não estava preparada e de um cara que pareceu ser uma rota de fuga para tudo isso, mas que ajudou a cavar o buraco e empurrá-la para o fundo.
Nunca se sabe o que é deixado de fora quando se edita um documentário, mas acredito na boa intenção do diretor Asif Kapadia, que fez a artista falar por si mesma: não há depoimentos de amigos, apenas. A grande depoente é a própria Amy, que se estrutura e se desestrutura diante de nossos olhos, fazendo com que a gente desça com ela até o subsolo da sua vulnerabilidade. Difícil evitar o nó na garganta e a profunda sensação de desperdício. Sabemos que basta dobrar uma esquina errada para que a pessoa se desoriente e vá parar no lado oposto da história que tinha para viver. Amy foi tão longe em seu desatino que não conseguiu mais voltar. O documentário ajuda a entender como ela se perdeu – e o que nós perdemos também
Martha Medeiros, 06/03/2016